Os desdobramentos da arte primitiva numa abordagem antropológica

Série de posts relativos ao Curso de Especialização em História Social da Arte, PUC-PR.
Disciplina: Antropologia da arte. Professor: Cauê Kruger.

Dubuffet, Jean- 1954- Museum os Modern Art, New York.

Arte primitiva- Altamira.



A arte constitui um objeto privilegiado para a investigação da moderna antropologia. Através dela se dissolvem as distinções superficiais que permeiam as relações humanas. Para Merquior: “a arte, em sua essência, fala a todos os homens, quaisquer que sejam sua cultura e sua época. É num ‘significante flutuante’ que se enraízam a invenção mítica e a criação artística” (Merquior, 1975 p 18.).
Franz Boas foi um pioneiro na investigação antropológica da arte. A análise da dimensão dos fenômenos culturais primitivos levou Boas a considerar a arte em si mesma como objeto para a investigação antropológica. Ele compara a arte e cultura a um caleidoscópio, ou ‘ mosaico orgânico’, a cada instante ocorre uma fragmentação, tanto material, como espiritual, de significado e de forma. A existência de valores estáveis são passados as demais gerações para logo em seguida se pulverizarem em outro conceito e mitificação. A cultura é um quadro vivo onde outras dimensões ganham significado e forma a todo instante. Por isso sua complexidade ao abordadar metodologimante algo tão dinâmico. Podemos considerar esse desejo de conhecer a história da cultura como a vã tentativa de engarrafar e classificar todas as águas de um rio caudaloso. Muita água já passou na história humana, não podemos capturá-la e análisa-la totalmente no microscópio conceitual da pós-modernidade. Segundo Boas: “Os estilos artísticos encontram-se em um “constante estado de fluxo”(Boas 1955[1927]:7). A historicidade intrínseca encontrada nos objetos de arte, requer procedimentos únicos de análise e deve ser considerada dentro da pluralidade de processos físicos, biológicos e geográficos. A totalidade sempre se apresentará fragmentada e talvez com essa síntese possamos intuir mais profundamente acerca da natureza da cultura primitiva. Para Geertz: “ fazer etnografia é como tentar ler (...) um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas, suspeitas e comentários tendenciosos. (Geertz, 1989, p 7). Talvez esse seja um dos maiores problemas teóricos encontrados pela antropologia: Generalidades x particularidades. A busca de uma compreensão dos significados, através da perspectiva do outro.
Primitive Art constitui um estudo antropológico da arte primitiva segundo a abordagem crítica de Boas das teorias evolucionistas. Nele Boas procura resolver a questão de como conjugar historicamente a relação entre fragmentação e totalização. Para Boas existe uma unidade fundamental de processos mentais das culturas. Um ponto chave da sua obra é a importância dada a análise de acontecimentos históricos com base no relativismo e nominalismo. Estes servem de base para considerações de fenômenos culturais por Boas. Aqui a metodologia se depara com a pluralidade de realizações aliado a carga psíquica subjetiva e individual. Segundo Almeida, essa problemática servirá para a articulação teórica da concepção boasiana da arte primitiva.
Uma problemática encontrada por Boas foi a definição da expressão da arte primitiva quanto ideia e/ou emoções. Ele dirige seu questionamento etnográfico à metodologia evolucionista e apresenta a noção de similaridade típica, convergência, divergência, nominalismo e associanismo. Enfatiza a independência dos fenômenos culturais onde a dinâmica da cultura surgiria da interação entre os indivíduos e sociedade. Em sua análise sobre Boas, Almeida procura reafirmar, o caráter significativo da arte. O objetivo é ir de encontro a uma semântica profunda e coerente à sua história, em contraponto da semântica superficial apontada pelo evolucionismo que busca leis gerais para toda a humanidade e concebe uma evolução igual para todas as sociedades. Dois aspectos são levados em conta: A redimensão do simbolismo primitivo quanto à delimitação do elemento artístico como elemento formal. A redimensão da questão da imaginação com ênfase na padronização estilística dos fenômenos culturais. Segundo Almeida, Boas daria ênfase na forma, simetria e ritmo a fim de encontrar um denominador comum de sua ánalise: o caráter convencional do elemento formal. O formalismo seria a base de sua investigação da arte decorativa primitiva (representativa, simbólica ou geométrica). A ideia da tradição e seu caráter inconsciente, viria à tona apenas através de interpetrações secundárias. Para Boas (1955[1927]:10), a técnica possui um valor estético em si mesma, pois “o julgamento da forma técnica é essencialmente um julgamento estético”. Na obra de Boas, podemos perceber que é através da dissociação entre dois níveis semânticos que redimensionamos o caráter expressivo da arte primitiva, essa seria a análise da relação entre a representação de dois aspectos, a técnica (consciente) e o simbolismo (inconsciente).
O fato é que a cultura primitiva exerceu e ainda exerce enorme influência nos artistas de todo o mundo. Ela seria o mais próximo de arte ‘autêntica’, resultado de uma cultura não contaminada pelos conceitos dominantes da arte ocidentalizada e moderna, seu contato foi de extrema importância para a definição dos rumos que a arte do Século XX acabaria tomando. Braque, Gauguin e Modigliani para citar apenas alguns dos artistas que ficaram bastante impressionados com as representações primitivas. Na obra: ‘As Meninas de Avignon’, uma das obras mais emblemáticas de Picasso, é bem visível a influência africana. Picasso ‘bebe’ das águas da arte primitiva africana, um dos rostos das Meninas de Avignon é quase a representação exata de uma máscara africana primitiva.
Máscara africana primitiva.
As Meninas de Avignon- Pablo Picasso


Os surrealistas também encontraram profundo apreço nesse tipo de manifestação e levaram suas influências para o trabalho que realizaram. Para Clifford (1998), em seu “sobre o surrealismo etnográfico”, o fazer etnografia nos anos 1920 era uma maneira de se concretizar a crítica surrealista da sociedade através da justaposição de diferentes maneiras de ser equivalentes. Do surrealismo teria nascido o relativismo cultural, tão enfatizado na obra etnográfica de Boas. Nas palavras de Krauss (1984, p. 504): “O primitivismo foi crucial para o sucesso de Giacometti em se libertar cedo não somente da tradição clássica na escultura, mas também das construções cubistas que apareceram nos anos 20 como única alternativa lógica. A maturação do trabalho de Giacometti foi uma função de sua capacidade de inventar em grande proximidade de fontes primitivas, possibilitando-o de produzir em pouco tempo, uma figura que era sua (ou seja carregava sua marca) graças à virtude de pertencer, de forma bastante profunda, à arte tribal africana”.
É interessante notar como os surrealistas, que tinham no inconsciente a base filosófica de sua obra, buscaram no primitivo o elemento ‘mágico-intuitivo’ que estaria ausente nas civilizações modernas. Pode-se afirmar que o surrealismo era marcado pelo que Hal Foster (1996, p. 175) chama de primitivist fantasy, uma “fantasia primitivista”: a fantasia “de que o outro, normalmente considerado de cor, tem um acesso especial a processos psíquicos e sociais primários aos quais o sujeito branco teria o acesso bloqueado.
Segundo Lagrou (2008, p 224) : “O encontro aparentemente ocasional com um objeto desses podia produzir um processo de livre associação que revelaria associações ou soluções estéticas não previstas para processos criativos obstruídos.” Lagrou cita o surrealista Breton, “que aqui o achado do objeto serve estritamente à mesma função que o de um sonho, ao liberar o indivíduo de escrúpulos emocionais paralisantes.” Os artefatos provindos desses outros mundos significavam possibilidades de experiências subjetivas, de iluminações mais do que de elucidações, Breton (Watthee-Delmotte, 2006, p. 4).
Os sonhos e viagens místicas sempre foram uma constante na cultura primitiva nos mais diversos pontos do globo, é de ordem geral e apresenta determinada regularidade. Trata-se de um fenômeno subjetivo que atua como unidade integrada na cultura em que ocorre e é o resultado de um desenvolvimento peculiar. Podemos citar diversas referência sobre a arte indígena ligada ao manifesto do não-visto e ‘mágico’ através do xamanismo.
“O xamã é como um rádio’, dizem. Com isto querem dizer que ele é um veículo, e que o corpo-sujeito da voz está alhures, que não está dentro do xamã. O xamã não incorpora as divindades e os mortos, ele conta-canta o que vê e ouve: os deuses não estão “dentro de sua carne”, nem ocupam o seu hiro (corpo). Excorporado pelo sonho, o xamã ou seu “ex-corpo” (hiro pe) fica na rede, enquanto sua i~ - aquela que será do céu – sai e viaja. Mas é quando ele volta que o xamã canta. E, quando os deuses descem à terra com ele – que é quem “faz descer” (...) os deuses -, descem em corpo, não em seu corpo... Um xamã encena ou representa os deuses e mortos, ele torna visíveis e audíveis suas ações, mas não os encarna em sentido ontológico” (Viveiros de Castro, 1986, p. 543).
Segundo Lagrou em: Els. Arte ou artesanato? , o xamã seria o tradutor dos mundos dos seres invisíveis: “ a figura do xamã muitas vezes coincide com a do artista entre os ameríndios. os artistas wauja, autores de máscaras, panelas e, também, de desenhos em papel de grande apelo plástico (Barcelos, 1999). Localizam em sonhos sua inspiração para a representação dos apapaatai, seres sobrenaturais causadores de doenças e passíveis de serem apaziguados através da promoção de grandes festas em sua homenagem. Neste caso, são fabricadas suas ‘roupas’ encenadas na forma de máscaras de grandes proporções. Os desenhistas wauja são os xamãs ou pajés da aldeia, os que sabem sonhar com estes seres sobrenaturais. Deste modo, os xamãs tornam-se os maiores artistas desta sociedade, pois, ao sonharem com osapapaatai, seres invisíveis a olho nu, criam novas imagens destes seres que serão materializadas na forma de máscaras rituais. Esses mesmos seres são visualizados pelo pajé em miniatura dentro do paciente, onde atuam como agentes patogênicos e precisam ser retirados como parte do processo de cura.” (Lagrou, Els. Arte ou artesanato? Agência e significado nas artes indígenas IN: Proa).
Merquior nos fala da existência da semelhança entre o feiticeiro(o xamã) e o psicanalisado. Essa questão ocupa o centro de dois ensaios de Lévi-Strauss — Le Sorcier et sa magie e L'Effi-cacité Symbolique (Strauss 1958, 183-226) As ideias propostas por Lévi-Strauss sugere um agrupamento em torno da identificação do conceito de inconsciente ao de função simbólica (Strauss, 1958, 225). Por isso, a comparação entre magia e psicanálise torna seu contexto natural. (Mequior, 1975, p 20). Além disso, certos processos inconscientes oferecem similitudes espantosas com relação à criação estética. As técnicas próprias ao dinamismo do sonho, segundo Freud,— a condensação, a substituição, a sobredeterminação — são muito freqüentemente mobilizadas no simbolismo da arte, verbal ou não-verbal. (Mequior, 1975, p 36).
Numa perspectiva do relativismo boasiano poderíamos analisar o surrealismo através de seus processos históricos como “uma expressão de mentalidade e objetivos bem específicos, tipicamente parisienses, de jovens intelectuais, principalmente escritores, que passaram pela experiência da Primeira Guerra Mundial, onde sentiram na carne o poder do absurdo da guerra e a perda de moral de um discurso dominante de uma Europa vitoriosa e superior.” Lagrou (2008, p 223). Mas a semiótica profunda das obras surreais e sua significação é um aspecto que deve ser levado em extrema consideração. Os surrealistas estavam interessados em transformar a si mesmos assim como o mundo. A arte primitiva se ofereceu como aliado natural no sentido que estes pareciam possuir a solução existencial procurada pelos surrealistas.
Clifford propõe que vemos no surrealismo um estado de espírito crítico inspirador do modernismo e retomado pelos críticos da cultura que inspiraram o pós-modernismo, o surrealismo pode ser visto como atuante até hoje. (Clifford, 1998, p. 63). Para Panofsky: “o conteúdo, em oposição a tema, pode ser descrito como aquilo que a obra denuncia, mas não ostenta. É a atitude básica de uma nação, período, classe, crença filosófica ou religiosa — tudo isso qualificado inconscientemente por uma personalidade e condensado numa obra”. E ainda: à demanda de uma ciência da arte que se coloque do ponto de vista da história do sentido. (Panofsky 1976b[1940]:33).
Os artistas no Brasil, também redescobrem a arte primitiva e se utilizam dela, vale citar a modernista Tarsila do Amaral que busca a simplicidade da linguagem da arte popular brasileira, assim como a temática fantástica e dos mitos indígenas. Vicente do Rego Monteiro se deixa influenciar pela cerâmica marajoara, através da estilização geométrica e ornamentação. A pintura de Volpi nos aproxima da cultura popular dos pintores primitivos pré-renascentistas.
Em todos esses desdobramentos da arte primitiva ,podemos observar a tensão ‘história’ versus ‘teoria’ e suas implicações práticas na abordagem de um fenômeno cultural. Para Almeida, devemos buscar articulações o mais complexas possíveis ao se tratar do ‘estético’ e ‘afetivo’. Quando tomamos o objeto arte por análise devemos observar a tensão entre relatividade e universalismo. “O artista primitivo não tenta desenhar o que ele vê, mas combinar o que constitui os traços característicos que são tomados como símbolos do objeto e, assim, associar formas e objetos de maneira, a nosso ver, inusitada”. (Boas 1940[1903]:562), E ainda: (Boas 1955[1927]:128), “A mesma forma pode receber diferentes significados, que a forma é constante, a interpretação variável, não apenas tribalmente, mas também individualmente”. Almeida utiliza a palavra “mônada” no sentido de totalidade e cita Lévi-Strauss para definir a significação, como um processo decorrente do plano das ‘conexões internas’ às formações culturais particulares (cf. Lévi-Strauss 1975[1944-45]).
O artista contemporâneo ainda procura nos rastros primitivos e nas manifestações ditas primitivas uma forma de expressão que esteja em concordância com seu trabalho. Este seria o desejo de buscar padrões formais e valores humanos alternativos ao racionalismo exacerbado da sociedade moderna e sua cultura.

Bibliografia:

ALMEIDA, Kátia Maria Pereira de. Por uma semântica profunda: arte, cultura e história no pensamento de Franz Boas. MANA 4(2):7-34, 1998.

CLIFFORD, James. O surrealismo etnográfico. In: CLIFFORD, James. A
experiência etnográfica. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1998. p. 132-178.

BOAS, Franz 1955 [1927]. Primitive Art. New York: Dover Publications.

FOSTER, Hal. The return of the real: the avant-garde at the end of the
century. Cambridge: MIT Press, 1996.

Viveiros de Castro, Eduardo. Araweté, os deuses canibais. Rio de Janeiro: Zahar& Anpocs, 1986.


LAGROU, Els. Arte ou artesanato? Agência e significado nas artes indígenas IN: Proa: Revista de antropologia e arte. Unicamp. Disponível em: http://www.ifch.unicamp.br/proa/

MERQUIOR, José Guilherme. “Arte e sociedade” e “A delimitação do conceito de arte”In: A estética de Lévi-Strauss. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1975.

PANOFSKY, Erwin. 1976b [1940]. “Introdução: A História da Arte como uma Disciplina Humanística”. In: Significado nas
Artes Visuais. São Paulo: Perspectiva. pp. 19-46.


KRAUSS, Rosalind. Giacometti. In: RUBIN, William (Ed.). Primitivism in 20
The Century Art. New York: The Museum of Modern Art, 1984. p. 504.

Comentários

  1. Que bacana esse tipo de arte, adoro história, juntar história e arte é tudo de bom.

    Valeu Sheilla,
    Linda noite querida.

    Aquele abraço!

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  2. Oi Sérgio!
    Acabo postando esses textos da minha pós pois não quero perde-los nos arquivos infinitos do computador. Aqui eu tenho a ilusão que eles estão seguros, hehe. Super abraço!

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  3. Muito legal!!! Essa especialização deve ser ótima!!!eh,eh,eh.
    Bjs. Sissi.

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  4. Oi Sissi, sim essa especialização é show, aconselho todos os amantes, simpatizante e outros antes a faze-lo também, rsrs. Abração!

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  5. como que acha as mascaras africanas de pablo picasso e o significado?

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  6. do quadro as meninas de avignon

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  7. São As Senhoritas de Avignon, não as meninas! fora isso, gostei :)

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